30 maio 2011

saudade

Kenji. Paranapiacaba, 2011.

Nesse fim de semana de novo senti a saudade me persuadir. Fiquei nesse vão que me faz lembrar que eu sou, além das pessoas que eu amo, indivisível (indivídua), apesar da minha aptidão pra esparramar. Integrando pelo menos não corro o risco de me dissolver até virar infinito.
A saudade me fez viver lembranças e lembrar do abandono e assim, quatro elementos fizeram sentido juntos. Dois por acaso, dois por insistência.
Saudade, memória, lembrança e abandono e quatro interpretações.

II.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas.)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)

(Manoel de Barros, livro sobre nada, 2004, 11a. ed.)




“instabilidade e criação coletiva no espetáculo me=morar”
Neste artigo contextualizo a criação coletiva do espetáculo me=morar: o corpo em casa, elaborado pelo Coletivo Corpomancia em uma casa da vila dos ferroviários de Campo Grande (MS), em 2009 e 2010 e transposto para a videodança em 2011, e a relaciono com o paradigma da imunização, categoria criada por Roberto Esposito com o intuito de preencher lacunas deixadas por Foucault nos estudos sobre biopolítica, para tecer uma reflexão sobre tensões políticas contidas nesse movimento, do qual fiz parte. Me=morar... foi buscar num lugar que cheira tradição na cidade de Campo Grande húmus pra criar uma dança articulada à realidade dos intérpretes e criadores, com o objetivo mesmo de experimentar uma dança que não cede à tendência de se deixar coreografar por tradições hegemônicas da dança contemporânea do Brasil, apesar de dialogar com elas, ou de se relacionar verticalmente com uma técnica por adequação. A estratégia foi a de criar coletivamente a partir da interpretação dos cinco sentidos em contato com o ambiente da vila dos ferroviários. A motivação não tinha rosto nem chão, mas tinha limites: dos próprios corpos, da proposta, do coletivo, do que a casa nos oferecia, do valor do financiamento e do tempo. A temática caiu como luva a esse desejo de "apropriação" porque relacionou a memória do corpo com ícones do passado da cidade, para gerar uma continuidade a partir de um comum em ruínas e abandono. Em vez do centro estar no meio do palco, ou no centro econômico do país, esteve no corpo dos dançarinos e em uma rua estreita de paralelepípedos escondida entre as ruas largas, retas e planejadas de asfalto de Campo Grande. Alimentou-se de um passado não para transformá-lo em típico, mas para mostrar que está vivo, em movimento, em transformação permanente, porque abandono é a memória que ainda não soube alinhavar as fragmentações e contradições que nos constitui.

02 maio 2011

fragmental

O fragmento dura até o alcance de um objetivo, mas a vida dura mais e engloba mais do que algumas metas e está além de qualquer controle. Narrativa acaba, mas vida insiste em seguir. Alcançada uma meta, parte-se para outra, mediada ou não por intervalos de preparação, descanso, vazio, obsessão. Como se a vida só fizesse sentido em experimentação porque o sentido que a antecipa já não encanta nem sacia mais. Posso fazer o que eu quiser, mas tem algumas combinações que podem não dar certo e, por mais que não seja linear nem causal, alguns fatos de agora podem desandar toda a narrativa depois. Porque tem coisas que a gente não esquece. O artesanato constante fica no fazer molduras. Mas a moldura nem sempre alcança tudo o que a gente quer, ou alcança mais do que a gente gostaria, e o um fica parecendo dois, porque a gente também está além de qualquer controle de si sobre si mesmo como o outro sobre si e o si a partir do outro. Ao mesmo tempo em que é fluxo é subjugação em jogos de espelho e repulsão. E há influências. Porque as porteiras não fecham nunca.

Escrevi incentivada, dentre outras vivências, pela leitura desse fragmento:



“Porém a nós, a nós sem dúvida – resta falar dos fragmentos do homem fragmentado, que perdendo suas crenças perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas (...) E, se alguma alteração tem sofrido a minha poesia é a de tornar-se, em cada livro, mais fragmentária. Mais obtida por escombros. Sendo assim, cada vez mais o aproveitamento dos materiais e passarinhos de uma demolição.” (Manoel de Barros, Gramática expositiva do chão – poesia quase toda, 1990 apud O meio é a mestiçagem, 2009)