18 junho 2011

arquipélagos e corações partidos

O problema da especialização é porque a resolução dos problemas nunca vai se dar a partir apenas de um viés. Não adianta uma pessoa especialista em segurança pública propor resoluções pra violência que envolve o ambiente e as pessoas usuárias de craque na região central de São Paulo só pelo viés da segurança pública, ou do direito, ou da polícia, porque é um problema que envolve muitas relações sociais e afetivas, o que cada um daqueles envolvidos pensa sobre si e sobre a vida, as frustrações, as estratégias precárias de sobrevivência, de percepção de si e de percepção de si em um contexto social mais amplo. Uma pessoa que cheira craque todos os dias não é só "drogada", essa é uma das ações dela no dia-a-dia. Ela também exerce papeis na família, escola, amigos, instituições religiosas. O que ela acredita que ela é? Em que ela acredita? O que ela quer? Como ela lida com as constrições que todo mundo recebe todo dia? Quem acredita em liberdade como sendo o presentinho que todo mundo ganha de fazer o que quer, como quer, sempre, acaba se revoltando ainda mais, porque é impossível ser inteiramente livre.
Pra realmente haver uma tentativa de desanuviar a montanha de violências que envolve a população de centenas de pessoas que diariamente contribuem para que a Cracolândia continue a existir precisaria de uma ação que envolvesse não só policiais em contato direto com os traficantes e usuários, mas os familiares (deve ter gente que nem tem família ou que fugiu da família por ser ela emanadora de violência ou por medo de retornar depois de algum grande erro que tenha cometido ou por medo admitir fracasso no american dream que a cidade de São Paulo representa pra muita gente no Brasil e na América Latina).
Fato é que muita gente que não tem a ver diretamente com o consumo de drogas, mas que vive ali nessa região, tem sofrido com essa população que invade esse lugar todas as noites.
Deve ser uma cena bem triste.
Pode ser que esteja romantizando (deixando mais pesado do que realmente é).
Mas ver todos os dias gente morando na rua, crianças estateladas no chão embaixo do sol ou nesse vento frio durante o dia, parecendo mortas em vida, é muito foda. Uma situação tão antiga e que, uma opção de amenizar isso, os albergues, são desativados pelo prefeito da cidade, não dá pra entender onde que se quer chegar e se dá pra acreditar em alguma coisa nessa vida ou se tudo são burocracias e instituições públicas recheadas de pessoas que, por colocar prioridade na preservação de suas vidas e confortos, deixam sempre pra segundo plano posicionamentos que podem causar conflitos mas que podem levar para alguma ação que realmente mude alguma coisa.
E isso me faz lembrar que a modernidade, além de todas as coisas boas e ruins e mais ou menos ou indiferentes, trouxe a necessidade da gente se auto-preservar (em outros termos, fez emergir uma política diretamente ligada ao corpo: a biopolítica). Se a gente precisa se auto-preservar, segurança é a menina dos olhos. Em nome da segurança a gente faz e deixa de fazer muita coisa e de repente nos vemos uns bundões sem conseguir sair de uma redoma que a gente cria cotidiana e diariamente. É muito difícil se auto-preservar sem deixar bem clara uma fronteira entre si e essas pessoas que todos os dias se drogam no centro da cidade (eu-eles) - distinções territoriais. Difícil também se auto-preservar provocando conflitos que podem levar a elucidações.
Ao mesmo tempo, como não ficar indignada com alguém que quer se auto-destruir? E mais indignada com quem, para se auto-destruir, coloca em risco a vida de outras pessoas?
Pode ser que seja uma questão de vida, ou de uma questão de morte em vida. Se eu for levar em consideração a frase que um amigo me mandou hoje por e-mail, de que “morte não chega com o fim da vida, mas sim com o fim da vontade de viver”, pode ser que os usuários de craque sejam mesmo mortos-vivos para esse tipo de vida que a gente quer acreditar que é melhor pra se viver.
E não conseguir acreditar que esse tipo de exclusão e esse tipo de cegueira em relação a pequenas ações que poderiam amenizar ou transformar isso tudo me deixa muitas vezes sem vontade de viver.
Mas ser agente e receptora de violência todos os dias me deixa numa situação menos utópica, que me dá pernas pra seguir em alguma direção que não a contemplativa.
Acho que eu alterno morte e vida assim como um pêndulo. Às vezes morta-viva, às vezes viva-viva, porque acredito e desacredito nas coisas como se fossem uma massa una, e é aí que me vejo por uma perspectiva unificante, e é disso que eu falo no começo. Sou por muitas perspectivas e o pêndulo é um erro recorrente. Ou tudo ou nada. E considerar o mais ou menos é continuar a perceber as coisas como se fossem lineares, porque fica no meio do caminho, entre dois pólos. São muitos pólos, uma constelação.
Boto fé na pluralidade sem querer contaminar esse discurso que está influenciado pelas ciências humanas, pela dança, pelas artes, pela minha vivência cotidiana de mulher de classe média, heterossexual, migrante do Mato Grosso do Sul para a cidade de São Paulo, por um sentimento religioso. É guiado por uma paixão, mas que aceita restrições de fluxo contínuo, porque sou fragmento mesmo, a gente é um monte de ilha junto. Perceber as ilhas pela perspectiva do mar (e ser arquipélago só é possível por um mesmo mar que envolve todas as ilhas e que está sempre em movimento) pra mim é perceber uma faísca pra continuar a acreditar na vida e continuar a viver com vida.
Meu partido é do coração partido. Partido em milhares. Cada parte uma parte e também coração.

(partido do coração partido da música, foi uma lembrança ativada pelo post no blog da Camila, que eu nunca deixo de acompanhar)

05 junho 2011

pra virar pássaro

Pra virar pássaro
Só precisa tocar a pele de leve ou deixar alguém fazer por você.
Bolinhas vão se disseminar pela superfície lisa.
As penas estão prontas pra nascer.
O próximo passo voou. Na imaginação.
E transformou o pássaro em moça feliz.
Anjo asa a gente.