Por Thereza Rocha
Suponhamos um término de namoro temperado pelas brigas, mágoas, choros e promessas de – Nunca mais! – de costume. Suponhamos que sigamos o pedido de Eliseth Cardoso na canção, riscando o nome do ser amado do caderno, não suportando mais o inferno daquele amor fracassado. Ao fim de um tempo, o ser outrora amado, será definitiva e resolutamente apagado da memória – quase um defunto. Meses se passarão até que um dia trilhemos um caminhar fresco e novo pela rua andando sobre os passos da vitória. O burburinho dos passantes nos anima, parece combinar com o fôlego renovado de quem triunfou em esquecer. Nesta caminhada campeã, página virada do tal caderno, assim como quem não quer nada, passamos desavisados em frente a uma loja de perfumes e eis que lá de dentro alguém que experimentava o perfume do ser, outrora amado, deixa escapar aquele aroma dos infernos porta afora. É um átimo de segundo para que a pessoa inteira se materialize à nossa frente: a textura da pele, o som da voz, nossa! – eis o fantasma do passado a nos assediar novamente! O corpo não esquece jamais.
Trata-se aqui de um exemplo quase tosco se comparado à beleza e à nobreza das madeleines de Marcel Proust. Mas estamos sim a falar da memória e das lembranças. E de como no corpo, a memória não conhece o passado. A memória só conhece o presente. Do ponto de vista da memória, é sempre hoje, sempre agora. Para uma necessária distinção, aquilo a que comumente chamamos de memórias, receptáculos de passado, serão aqui para nós, chamadas de lembranças. As lembranças são representações do passado; modos como guardamos o passado como tal, como algo que já passou, em um dispositivo a que chamaremos aqui de arquivo, distinto portanto da memória. Pois a memória, segundo nossa perspectiva, é no corpo um motor – um motor de presente – sempre pronta a atualizar a lembrança, tornando-a atual, fazendo dela uma outra, uma outra, uma outra e assim sucessivamente. A memória dá à vida sempre uma nova chance. Do ponto de vista da memória, o passado nunca passou; o passado está sempre a passar, a se modificar. O passado é matéria plástica.
Ao lado da memória voluntária, a que supomos controlar, existe uma outra, tal como nos sugere Proust: a memória involuntária, sempre conjugando dados e acaso, vários dados, de modo quase gratuito, à revelia de nossa vontade e de nosso controle, produzindo assim o tempo – tempo presente – da experiência – tempo sempre a devir. Memória que necessita, entretanto, e paradoxalmente do esquecimento para poder lembrar. O esquecimento como combustível de uma memória sempre a trabalhar. Se lembrássemos tudo, todo o tempo, não nos lembraríamos, na verdade, de nada. É necessário esquecer. É impossível esquecer.
Capítulo 4 do artigo "Entre a arte e a técnica. Dançar é esquecer" de Thereza Rocha, professora do curso de Dança da UniverCidade, doutoranda em artes cênicas na UniRio e professora do curso de pós-gradação em dança da Universidade Católica Dom Bosco.