06 maio 2009

Folkotidiano

Ultimamente venho me identificando com algumas frases que me soavam bastante externas como “gosto não se discute”, “há males que vem para o bem” ou “não coloque o carro na frente dos bois”. Ouvia as pessoas dizerem, mas eu mesma nunca os repetia, a não ser quando queria fazer referência satírica às frases que, aparentemente, são repetidas ao longo de gerações como que por osmose. Eu, artista da contemporaneidade, mantinha o meu “papel” de preservar a diferença e negar a tradição. Certo é que incorporei cargas históricas da sociedade que integro, ou ela que me engoliu, porque essas sabedorias vêm me fazendo um “baita” sentido, à medida que vou me deparando com algumas dificuldades e descobertas da vida adulta.

Será que aprendê-las e incorporá-las é um dos pré-requisitos da entrada real à vida adulta e determina o reconhecimento dos outros sobre nós enquanto gente? Quantas pessoas ao se tornarem pais ou mães repetem canções de ninar que seus avós e bisavós também cantavam para novos integrantes da família, ou já “deram uma banana” com aquele gesto que acompanha a ação para alguém que o incomodou, ou se deu o privilégio de rir “à toa”? 

Todos esses exemplos são manifestações do folclore que não faz parte de um tempo pretérito, que não está extinto ou localizado nas florestas como o saci-pererê ou como o mãozão das matas da Nhecolândia. Eles são vivenciadas todos os dias, em diversas esferas da vida cotidiana e são atuais, como explica Barreto, em citação de Marlei:
“...O povo não foi, o povo é (...) Toda vez que se dá maior importância ao passado, nos moldes da cultura folclórica, se aliena o próprio povo da realidade. E não há maior mal de afastar a comunidade de sua própria experiência, de seus contatos, de sua participação.” (BARRETO in SIGRIST, 2000, p. 29)

As frases feitas, ditados populares, locuções tradicionais são exemplos de como o folclore  é vivo tanto no meio rural como na cidade e é ressignificado por meios de comunicação de massa, por livros didáticos, além de ser repassado pelo tradicional boca-a-boca. 

Assim como frases, os gestos, a corporeidade e a maneira como nos movimentamos cotidianamente (ou também em festas) o nosso corpo está relacionada às referências familiares ou às pessoas de estreita e constante convivência, como amigos, familiares, namorado, colegas de trabalho, etc. No que tange ao universo corporal, parece-me mais difícil barrar incorporações, até mesmo porque não aprendemos a racionalizar este tipo de aprendizado, por mais que soframos interferências de educações do tipo “etiqueta” para regras de usos do corpo em espaços públicos ou para padronizar comportamentos em determinados locais e tempos. E meu, como é difícil admitir e perceber que me gesticulo como a minha mãe, minha entonação para perguntas e o tom da voz são idênticos aos da minha irmã, ando e me porto durante as refeições do jeitinho que meu pai também convencionou se comportar.

Nesse contexto é difícil delinear contornos de origens espaço-temporais deste conhecimento e dos processos de educação e comunicação, mas estes fatores indicam que a cultura popular (transmitida sem o artifício de tecnologias de informação e sem sistematização racional) está presente na formação de indivíduos e na maneira de se relacionarem com fenômenos de seu ambiente. 

Fontes de idéias:
BARBERO, Jesús Martin. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções tradicionais no Brasil. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1986.
SIGRIST, Marlei. Chão batido – a cultura popular de Mato Grosso do Sul, folclore e tradição. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2000.
Site Reporter Net. Dez ditados populares e seus significados. Acessado em 4 de maio de 2009. http://www.reporternet.jor.br/10-ditados-populares-e-seus-significados/

23 abril 2009

Silêncio preto

Em vez de ruído branco, vivencio agora o silêncio preto.
Não é o silêncio lento, do trovador cheio de estrelas, que canta o Tom reverenciando Luiza.
É silêncio preto de suspensão sem perscpectivas e que faz guiar cegamente.
Em vez de mar de leite, meu ensaio vivo desta cegueira momentânea faz movimento de desfocar, desfocar, desfocar, até perder a luz, e ficar o breu.
Breu intuitivo que desperta papilas gustativas, o tato e a audição. 
Desperta também facilmente qualquer tipo de manifestação sentimental mais rigorosa que, por hora, tento evitar expressar.
Silêncio em si, em sol, em dó.
De mim, do outro, de nós.
Silêncio de entender que a vida é uma representação constante e contínua e que nada ou tudo podem fazer sentido, mas o sentido está agora longe de se fazer nítido nas dunas da escuridão.

14 abril 2009

Encarnação [corponectividade]

"Capturadas [as informações] pelo nosso processo perceptivo que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bem singular: são transformadas em corpo."
(Katz e Greiner, p. 130 - artigo publicado no livro "O corpo" de Christine Greiner)

13 abril 2009

Criamundo

Dois criantes investidos de corpos abertos*

*única concretude diante do plasmazer estrutrante do toque que provoca, amacia e entorpece o vão que provém do sólido visível.

11 abril 2009

Antes de suportar o contato

Poema bem antigo..de 2005.

Mundo frágil
De isopor e creolina
Figurado pela transparência 
de um objeto que oculta a liquidez de sua origem

as fibras chegam a ranger os dentes que espetam.
as bolhas são destruídas 
a violência do bico de um beija-flor
seca a pele de couro da rachadura
sem vestir nem viver

Vazão.
Haste da vantagem de se desprender
a condição inicial de conviver
a síncope da traição.
Reverência ao inconstituível.

Sem lugar e sem controle
A vida cresce na seringueira movediça
Atolada na lama do ressentimento
Do ideal inalcançável de beleza 
De humildade
E ignorância

Vingativo
Vulnerável
Insuportável
Irresistível

Crueldade realista 
Ou se move pelo desejo
Ou se é movido por ele.
Difícil distinguir:
realidade e fantasia
diabo satânico e pura humanidade
verdade e agressividade
a cor do céu quando se está apaixonada. 

Sem vestir nem viver
Esconder seria uma arte
Não se importar
Se fechar para o mundo e suas idiossincrasias alienantes
Dividir o indivisível
Costurar os cacos de compaixão
De auto-estima
E sorrir

E onde estão os pés?!
Embolados em uma borracha com tecido.
Ou acrílico, madeira, ferro, isopor...
Se esconder seria uma arte!?
Pois o sapato seria uma solução!

ELO
Escancarar
ver e enxergar
sem colocá-lo na divinição

A tristeza não é uma forma de egoísmo!
Simplesmente vai e vem como os pés no chão
Que precisam se mover com seus movimentos inconscientes
Pra PODER andar.

06 abril 2009

pensamentos


da escada, o mar (continuação)

- Não consigo soltar o que me prende.
- Apenas puxe!
- Não estou falando das minhas pernas.
- Então a areia lhe segura o quê?
- Tenho uma sensação incômoda de insegurança em relação aos meus pés. 
Sem tocá-los no chão, sentia a gravidade pesar sobre a planta e os dedos desmotivando-os a andar.
- A insegurança está na areia e não nos seus pés. Concentre-se. O mar está prestes a se quebrar.
- O que insiro do mundo em mim, ao mundo não volta. Estou trancada em meu próprio corpo.

da escada, o mar


As duas desciam rapidamente as escadas feitas de pedras, terra de um marrom escuro e pequenas gramíneas. 
Uma delas vascilou entre um degrau e outro. Sabia que não estavam indo no sentido correto.
No final (ou no início) não havia nada além de areia: prefácio de um mar razo, claro, sem sal..
Sentia que a qualquer momento aquele quase lago mostraria sua ira sobrehumana e aí seria tarde demais para procurar qualquer saída. Os degraus eram muitos para proporcionar uma fuga ligeira.
Mas era isso o que ele queria.
Pensava que havia sido muito ingênua em se deixar levar por um pedido póstumo do amante de sua irmã. Em vez de ajudá-la, estaria levando-a para o fim de sua linha tenra que poderia, porém, significar o reencontro com o desconhecido mais recorrente de suas lembranças amorosas.