05 agosto 2009

A memória inventa a madeira, a madeira inventa a memória

- O que é isso?

- Dá a sua mão.

- Epa! O que você vai fazer?

- (risos) Esse aqui é palmatória, do tempo da escravidão. E sabe esse furinho, no meio, pra quê que serve? Pra doer mais.

Brincalhão, seu João Manoel me mostra a réplica que ele mesmo fez do instrumento que o maltratava nos tempos de escola, em que os alunos “ruins” recebiam palmadas na mão, vindas da professora. “E sabe quanto tempo eu estudei? Seis meses.”

Pode ter sido uma forma racionalmente velada de proteger as mãos (preciosas atualmente), mas certo é que seu João nunca se esqueceu de que para aprender, havia de ter muita atenção.

Com seu pai, marceneiro alagoano, não foi diferente: "No tempo da escravidão era assim. Meu pai não me ensinava a trabalhar a madeira. Eu via ele trabalhar e quando ele saía eu ficava tentando fazer igual."

Passados quase quarenta anos, recém-saído da "roça" pantaneira e morando na Campo Grande dos anos 1970, João Manoel da Silva, começou a criar animais em madeira para passar o tempo da rotina de guarda-noturno.

O passa-tempo foi virando profissão e a sombra do pé de laranja, da rua Abrão Júlio Rahe, 2708, virou a oficina onde suas idéias iam tomando corpo na madeira, resultado da interação dos movimentos das mãos e braços, intermediados por diversas ferramentas, que como ele mesmo diz “não são elétricas. Por isso que eu sou artesão tradicional”.

Tuiuius, onças, jacarés, pássaros...Errando, criando e aprendendo, chegou ao carro-de-boi, que para ele é “o símbolo de Campo Grande” e que o fez um artesão reconhecido: já recebeu prêmio de melhor artesão de Mato Grosso do Sul, em 1991, vende seu trabalho para vários países e “tem uma peça minha na novela Pantanal, mas nunca recebi nada por isso.” Sua última surpresa foi ver sua foto, história e trabalho impressos em um livro, na condição de um dos representantes do artesanato sul-mato-grossense. O livro foi lançado em agosto deste ano e mapeia o artesanato de todo o Brasil (“Em nome do autor”, Beth Lima e Valfrido Lima, 2008).

Seu trabalho não se assemelha a trabalho algum. Sua arte reelabora o que ele vê no “real”, colocando dedos de sua própria identidade nos personagens em madeira, como o tuiuiú com formas humanas (que já foi usado como troféu para artistas sul-mato-grossenses). Postura curvada, o bico pressionando o tronco, olhar cabisbaixo e ao mesmo tempo altivo, como quem se defende de um mundo urbanizado.

Sozinho, aprendeu a criar sua singularidade e acredita que sua arte não vá morrer consigo. O conhecimento que passa adiante, para sua neta e sobrinho, diferente de sua experiência, é ensinado com carinho e cuidado, sem brechas para “estupidez” ou palmatórias.

(perfil de João Manoel da Silva - artesão sul-mato-grossense - publicado na revista Cultura em MS em 2008)

29 julho 2009

galanteadores

Acho um barato a letra desse samba.
Lembrou-me um senhorzinho galanteador que conheci há dois dias atrás.
Sorte nossa que a Marisa Monte, Arnaldo Antunes e o Cézar Mendes conseguem colocar em palavras o que a gente geralmente sente aquecer a carne..

Eu só não te convido pra dançar, porque quero falar com você em particular.
Há tempos tento encontrar um bom momento, alguma ocasião propícia, pra que eu possa tocar suas mãos e olhar nos olhos teus.

Seria bom quatro paredes, eu, você e Deus.
Procuro explicar meus sentimentos, só consigo encontrar palavras que não existem no dicionário.

Você podia entender meu vocabulário, decifrar meus sinais, seria bom.

(Quatro paredes)

24 julho 2009

meu queixo e meus pés



Nadando nas piscinas do São Carlos Clube eu não me contentava em só explorar os fundos da piscina e sentir a respiração ficar diferente depois de muito tempo embaixo d’água. Na época eu tinha uns 9 anos de idade. Uma amiga e eu fomos para a piscina das crianças ultrapassar os limites da gravidade e tentar fazer bananeiras com as pernas no ar e a cabeça na água. Foi numa dessas tentativas que eu escorreguei e caí com o queixo no fundo da piscina com todo o peso do meu corpo em cima dele. O sangue começou a diluir no cloro da água e aí que fui perceber que havia alguma coisa errada. Enquanto esperava assustada a mãe da minha amiga me dar assistência, meu irmão chorava por mim do meu lado sentado no mesmo banco que eu. Isso foi no início do ano.
Depois de uns dois meses de iniciadas as aulas na escola, num final de semana ensolarado meu pai, inspirado pelo dia lindo que se abria lá fora, decidiu nos levar (meu irmão e eu) a um clube afastado da cidade, com campos abertos e quadras esportivas. Eu pensava que tinha talento pra tudo, mas esporte era uma coisa que me surpreendia sempre. Fui aprender a jogar futebol pra arrasar meu irmão no gol, mas na minha primeira lição - chutar a bola sentido ao gol - senti que uma parte do meu pé já não estava ligada ao resto do corpo. Eu trinquei o pé direito chutando a bola e o resultado disso foram 40 dias com ele engessado. Eu só pensava em como eu ia conseguir ensaiar para a apresentação do dia dos pais na escola. Dança já era pra mim uma coisa séria.
Novamente no mesmo ano, só que já no segundo semestre, fui tentar superar minhas dificuldades no esporte, porque não achava possível não conseguir competir nesse campo com meus amigos. Dessa vez, jogando basquete, miro o ponto do muro que havíamos definido para ser a cesta, dou um salto dos mais altos que já havia conseguido dar e quando volto ao chão, meu pé direito não reponde bem aos estímulos anatômicos e toca o chão não com a sola, mas com a parte lateral direita. Caio com o pé “dobrado” no chão. Tenho que agüentar a dor da queda e as gracinhas dos meus adversários por não perceber que estava numa posição desconcertante e minha calcinha estava aparecendo! Tinha 9 anos e acho que, naquele momento, comecei a alimentar a minha raiva pelo "sexo oposto". Por que eles simplesmente não me ajudaram?!?
No final do ano os médicos já colocavam em mim um colete protetor contra os raios X, tamanha havia sido a quantidade de vezes que tive que registrar fotos do interior dos meus ossos. Na escola era conhecida como a garota que se quebrava toda e desisti de superar limites com esporte. Decidi investir na dança.

15 julho 2009

apé

03 julho 2009

perda doída

Há dias estou ensaiando uma maneira de expressar uma perda doída que ocorreu na semana retrasada..Vamos ver se dessa vez eu consigo..

Lembro que me pediram pra pesquisar o significado do meu nome, sua história, seus porquês...esse som que se confunde com a idéia que faço de mim mesma.
Quando expus os resultados da pesquisa, vieram olhos borbulhando conexões, impressionados com a quantidade de gerações em que meu nome se repetia. Essa repetição poderia ser o foco do meu movimento que deveria se iniciar pela escápula e desenvolver-se em um caminho estreito, reto, “sem quebrar nenhum limite!”.
Depois de algumas horas, dias, tentativas, fui lá eu mostrar o que acreditava que poderia me representar em movimento. Eu podia usar a voz.
“Faça a sequência toda aí, onde você está.”
Pronto. Perdi minha liberdade de deslocamento. Estou de frente para o público, protegida apenas pela minha miopia.
“Fale mais vezes. Muitas mais!”
As repetições agonizavam. Queria fazer mais forte cada vez que repetia. E os olhares para traz, para todas as gerações que me acompanhavam se tornavam claramente presentes diante das minhas costas.
Pude gritar quantas vezes quisesse aqueles nomes que me queriam dizer quem era ou deveria ser.
Engraçado que justo antes daquele encontro eu havia decidido me priorizar.
A descoberta já foi dançada para uma platéia e pretendo que seja fruída por mais gente.
Sempre que a interpretar não vão ser mais apenas meus antepassados a me rodear. Ele também vai estar com aquela energia que me aquecia e me fazia acreditar enquanto indivíduo ativo.
Uma pessoa assim não dá pra esquecer. E não dá pra deixar de se aproximar.
Os discursos, as expressões, a nitidez em não hesitar em dizer sua opinião, de corrigir sem confrontar ou desprezar, de dizer que tudo precisa de um início e um fim sem que você consiga discordar e “tome decisões, feche o universo de movimento, que depois você vai ver que vai jogar muita coisa fora” e isso vale também pros meus textos.. Seus movimentos curtos e súbitos logo se tornavam leves e flutuantes na memória de quem o vivenciou.

Naquele encontro usei a voz, mas vou guardá-la nesses minutos em sua homenagem.
A roupa é elegante, porque esse prof era muito chique..

(homenagem a Roberto Pereira – foi crítico de dança do Jornal do Brasil, coordenador do curso de dança da UniverCidade, ex-professor da pós-graduação em dança na UCDB e pessoa graciosa que coordenou, junto com Esther Weitzman um curso especial de investigações coreográficas em abril deste ano. Se foi em 21 de junho de 2009.)

29 junho 2009

milagre de São João



São João Batista protegido por divindades diversas em um terreiro de umbanda.

Esse "andor" (como é chamada a base móvel onde o santuário é elaborado) foi da tia do Pedro Paulo, aquele ali em cima, ao lado das imagens que o protegem desde o seus 2 meses de idade. Radialista, nascido em Corumbá em 1965 (como diria minha amiga Patrícia: o mesmo ano em que se iniciou a guerra do Vietnã e considerado ano da cooperação mundial pelo ONU), Pedro Paulo teve a sorte de ter uma mãe sensível às sincronicidades do destino.

Neste mesmo ano, com o filho de apenas dois meses no colo, Dona Carlinda acompanhada de seu marido saíram desacreditados do hospital, com a previsão de que nada poderia ser feito para salvar seu filho da morte.

Sua tia o lavava para colocá-lo no caixão. Já não se mexia, não apresentava sinais vitais. Nesse momento sua mãe ouviu a procissão que passava na esquina ao lado da casa, descendo as ruas cantarolando as ladainhas de São João, para lavá-lo nas águas do rio Paraguai.

Correu até o santo, parou a procissão por alguns instantes e pedia chorando, com toda a sua energia, que seu filho retornasse à vida, que ainda não era o seu momento de "desencarnar". Dona Carlinda sensibilizou a todos os fiéis. Uma mulher de fibra, cuidava dos filhos, arrumava e administrava o lar, coordenava o centro de Umbanda em frente à sua casa para reunir pessoas no exercício da fé ao encontrar-se com aspectos do desconhecido, descendia da etnia Guató e encarnava um índio da Amazônia (logo atrás de são João, com uma estrela estendida nas mãos), considerado da linhagem dos Oxossi.

Aos prantos, no momento em que a procissão se apropriava das preces de Dona Carlinda, também chegou sua irmã, a tia de Pedro Paulo, trazendo-lhes a notícia de que o filho voltara a viver. Chorava também!

O milagre foi agradecido com a promessa de sete anos de festa para louvar e lavar o santo milagroso próximo às ladeiras do Porto Geral. E os sete anos já se completam 44, desde que o milagre aconteceu.

A família, que passava em frente à casa dos Macedo, vinha de Cuiabá e já não mora mais na vizinhança. Descendem de portugueses, como tantos outros que se instalaram nas regiões platinas e se miscigenaram com a população local.

Desde que Pedro Paulo voltou a viver, e que se entende por gente, participa e, agora, organiza a festa que já se tornou tradição na vizinhança.

Cada um se encarrega de algum ofício para a festa acontecer: montagem das barracas, bebidas, comidas, doces, danças (quadrilhas), enfim. Uma festa que é feita em conjunto, cada um levando uma parte, e que sempre dá certo.

Pelo menos uma vez no ano é certo que todos farão a sua parte para fazer valer a tradição.
Assim como São João Batista banhava os fiéis, e Jesus Cristo, nas águas do rio Jordão para batizá-los, assim os corumbaenses o fazem para reciclar suas fés.

Claro, regados a muita bebida!

Uma festa santa que inclui o mundo terreno, sem pudores, sem ter de esconder o lado humano para falar de uma santidade que só o humano teria a capacidade de criar.

Há dez anos Dona Carlinda se juntou aos seus ascendentes Guató e ainda a festa continua quente lá no bairro Monte Castelo “ali depois da subidinha”, me explicam os vizinhos. Pedro Paulo e sua família já se apropriaram da responsabilidade de fazê-la acontecer, com as preces no centro de umbanda que precedem a descida do santo até o Porto Geral.

Além da festa, a memória deste acontecimento extraordinário é cada ano ressignificada por todos que ali participam de alguma forma, mas o nome do arraial não muda: arraial da dona Carlinda, assim como tantos que Corumbá concentra como da dona Ivone, dona Titina, dona Cassilda, ...
Mulheres assim continuam a germinar sabedoria através do séculos e das gerações.

28 junho 2009

navegando sem cais

Puta cena linda e só.
A luz se acabou e a banda continuou a tocar.
As pessoas se foram, os instrumentos estavam lá.
A esperança se perdeu, o mundo não parou de girar.
Considerou-se fadada a desaparecer, mas insistentes provaram que vale a pena viver bem perto dela.
"Vai sem paz, sem ter um porto, quase morto sem um cais (...) a solidão deixa o coração neste leva e traz".

Cenário virtual

As paredes da ladeira Cunha e Cruz ficaram enfeitadas virtualmente pela tecnologia antiga da sombra.
Cenário genial pra sentir e pensar a fé, a festa, a vida, o tempo, a dor e o espaço..