"Por que você deseja se superar continuamente? Por que rejeita os atritos? Por que insiste tanto em agradar?", indagava a analista. "Será que você não tem um lado sombrio? E, se tem, por que hesita em mostrá-lo?" Fernando saía arrastado do consultório. Quer dizer que a prepotência pode se travestir de eficácia e simpatia? A resposta ainda hoje o surpreende.
trecho de entrevista com Fernando Meirelles publicada na revista Bravo! (nov, 2010)
Como se a pressão entre as arcadas superior e inferior fosse resolver alguma coisa, não importa chocolate, maçã, soja, sorvete. A necessidade é de me pressionar, de condizer com a mesma sensação sobre mim, apesar de não existente personificado em alguma coisa específica ela existe, esse material que é abstrato, pessoal. Objetivistas não conseguem enxergar ou a acham óbvia. Subjetivistas não estão nem aí. Sem o privilégio de ter nascido nem um nem outro, vivo a sujeição intensa que acabam nos dentes, na articulação têmporo-mandibular.
Água. Muita água jorrando, se esparramando e tomando conta dos tornozelos, joelhos, quadris, bocas. Isso no final, porque começou com cheiro de mofo, cadeiras de plástico que escorregavam no chão de azulejo, colocadas em frente a um palco marrom, de madeira arranhada. Muitos corpos ocuparam o opereto de maneira previsível, vestidos previsivelmente e aplaudidos como havia de ser. A beleza se vestiu com blusa e calças largas, sandálias e bolsa transpassada, era um homem comum novamente, previsivelmente seguro, de perto engordado, com algum problema por de dentro, um problema grave. Minha pergunta foi respondida sinceramente com os olhos, a boca sorriu ironicamente e, como de rigor, respondeu com língua afiada alguma barbárie. Retrucava indiretamente, mas dizia que tudo estava bem, como havia de ser. Depois das palavras o ruído vinha das águas jorrando, jorrando e tomando conta do lugar e dos meus dedos, dos meus olhos, da roupa dele e do mau-humor que o vinha constituindo. Água que era conseqüência, mas queria pressentir que, logo em seguida, provocaria outra enxurrada de barbáries ambíguas, paralisantes.
Interessante receber um veredicto psicanalítico sem precisar pagar as centenas de reais que uma consulta desse tipo custa, mas tenho receio de que o sujeito do discurso esteja se olhando no espelho, em vez de sua janela.
"A revolução já não está na ordem do dia, mas a capacidade de fazer história está longe de ter desaparecido. Na perspectiva de vivermos melhor em conjunto, a cultura democrática, mais do que nunca, está em aberto e por inventar, requerendo que se mobilize a inteligência e a imaginação dos seres humanos".
(Gilles Lipovetsky - "A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada")