A saudade me fez viver lembranças e lembrar do abandono e assim, quatro elementos fizeram sentido juntos. Dois por acaso, dois por insistência.
Saudade, memória, lembrança e abandono e quatro interpretações.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas.)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege.)
Neste artigo contextualizo a criação coletiva do espetáculo me=morar: o corpo em casa, elaborado pelo Coletivo Corpomancia em uma casa da vila dos ferroviários de Campo Grande (MS), em 2009 e 2010 e transposto para a videodança em 2011, e a relaciono com o paradigma da imunização, categoria criada por Roberto Esposito com o intuito de preencher lacunas deixadas por Foucault nos estudos sobre biopolítica, para tecer uma reflexão sobre tensões políticas contidas nesse movimento, do qual fiz parte. Me=morar... foi buscar num lugar que cheira tradição na cidade de Campo Grande húmus pra criar uma dança articulada à realidade dos intérpretes e criadores, com o objetivo mesmo de experimentar uma dança que não cede à tendência de se deixar coreografar por tradições hegemônicas da dança contemporânea do Brasil, apesar de dialogar com elas, ou de se relacionar verticalmente com uma técnica por adequação. A estratégia foi a de criar coletivamente a partir da interpretação dos cinco sentidos em contato com o ambiente da vila dos ferroviários. A motivação não tinha rosto nem chão, mas tinha limites: dos próprios corpos, da proposta, do coletivo, do que a casa nos oferecia, do valor do financiamento e do tempo. A temática caiu como luva a esse desejo de "apropriação" porque relacionou a memória do corpo com ícones do passado da cidade, para gerar uma continuidade a partir de um comum em ruínas e abandono. Em vez do centro estar no meio do palco, ou no centro econômico do país, esteve no corpo dos dançarinos e em uma rua estreita de paralelepípedos escondida entre as ruas largas, retas e planejadas de asfalto de Campo Grande. Alimentou-se de um passado não para transformá-lo em típico, mas para mostrar que está vivo, em movimento, em transformação permanente, porque abandono é a memória que ainda não soube alinhavar as fragmentações e contradições que nos constitui.