29 junho 2009

milagre de São João



São João Batista protegido por divindades diversas em um terreiro de umbanda.

Esse "andor" (como é chamada a base móvel onde o santuário é elaborado) foi da tia do Pedro Paulo, aquele ali em cima, ao lado das imagens que o protegem desde o seus 2 meses de idade. Radialista, nascido em Corumbá em 1965 (como diria minha amiga Patrícia: o mesmo ano em que se iniciou a guerra do Vietnã e considerado ano da cooperação mundial pelo ONU), Pedro Paulo teve a sorte de ter uma mãe sensível às sincronicidades do destino.

Neste mesmo ano, com o filho de apenas dois meses no colo, Dona Carlinda acompanhada de seu marido saíram desacreditados do hospital, com a previsão de que nada poderia ser feito para salvar seu filho da morte.

Sua tia o lavava para colocá-lo no caixão. Já não se mexia, não apresentava sinais vitais. Nesse momento sua mãe ouviu a procissão que passava na esquina ao lado da casa, descendo as ruas cantarolando as ladainhas de São João, para lavá-lo nas águas do rio Paraguai.

Correu até o santo, parou a procissão por alguns instantes e pedia chorando, com toda a sua energia, que seu filho retornasse à vida, que ainda não era o seu momento de "desencarnar". Dona Carlinda sensibilizou a todos os fiéis. Uma mulher de fibra, cuidava dos filhos, arrumava e administrava o lar, coordenava o centro de Umbanda em frente à sua casa para reunir pessoas no exercício da fé ao encontrar-se com aspectos do desconhecido, descendia da etnia Guató e encarnava um índio da Amazônia (logo atrás de são João, com uma estrela estendida nas mãos), considerado da linhagem dos Oxossi.

Aos prantos, no momento em que a procissão se apropriava das preces de Dona Carlinda, também chegou sua irmã, a tia de Pedro Paulo, trazendo-lhes a notícia de que o filho voltara a viver. Chorava também!

O milagre foi agradecido com a promessa de sete anos de festa para louvar e lavar o santo milagroso próximo às ladeiras do Porto Geral. E os sete anos já se completam 44, desde que o milagre aconteceu.

A família, que passava em frente à casa dos Macedo, vinha de Cuiabá e já não mora mais na vizinhança. Descendem de portugueses, como tantos outros que se instalaram nas regiões platinas e se miscigenaram com a população local.

Desde que Pedro Paulo voltou a viver, e que se entende por gente, participa e, agora, organiza a festa que já se tornou tradição na vizinhança.

Cada um se encarrega de algum ofício para a festa acontecer: montagem das barracas, bebidas, comidas, doces, danças (quadrilhas), enfim. Uma festa que é feita em conjunto, cada um levando uma parte, e que sempre dá certo.

Pelo menos uma vez no ano é certo que todos farão a sua parte para fazer valer a tradição.
Assim como São João Batista banhava os fiéis, e Jesus Cristo, nas águas do rio Jordão para batizá-los, assim os corumbaenses o fazem para reciclar suas fés.

Claro, regados a muita bebida!

Uma festa santa que inclui o mundo terreno, sem pudores, sem ter de esconder o lado humano para falar de uma santidade que só o humano teria a capacidade de criar.

Há dez anos Dona Carlinda se juntou aos seus ascendentes Guató e ainda a festa continua quente lá no bairro Monte Castelo “ali depois da subidinha”, me explicam os vizinhos. Pedro Paulo e sua família já se apropriaram da responsabilidade de fazê-la acontecer, com as preces no centro de umbanda que precedem a descida do santo até o Porto Geral.

Além da festa, a memória deste acontecimento extraordinário é cada ano ressignificada por todos que ali participam de alguma forma, mas o nome do arraial não muda: arraial da dona Carlinda, assim como tantos que Corumbá concentra como da dona Ivone, dona Titina, dona Cassilda, ...
Mulheres assim continuam a germinar sabedoria através do séculos e das gerações.

28 junho 2009

navegando sem cais

Puta cena linda e só.
A luz se acabou e a banda continuou a tocar.
As pessoas se foram, os instrumentos estavam lá.
A esperança se perdeu, o mundo não parou de girar.
Considerou-se fadada a desaparecer, mas insistentes provaram que vale a pena viver bem perto dela.
"Vai sem paz, sem ter um porto, quase morto sem um cais (...) a solidão deixa o coração neste leva e traz".

Cenário virtual

As paredes da ladeira Cunha e Cruz ficaram enfeitadas virtualmente pela tecnologia antiga da sombra.
Cenário genial pra sentir e pensar a fé, a festa, a vida, o tempo, a dor e o espaço..

13 junho 2009

vou dar um bordejo lá em Porto Alegre



Vou dar um bordejo lá em Porto Alegre
Pra ver a coisa como ela acontece

As imagens são de um show como o de ontem, onde/quando fui curtir música, companhias malucas bem vestidas e bem intencionadas, bebidas destiladas, fermentadas, doces e salgadas..
Bitucas de cigarro eram os únicos obstáculos que meus pés encontravam no chão.
Falava-se e ouvia-se só de bem de perto.

Em uma descrição mais técnica da cena, as palavras estariam dispostas assim:
Os corpos se movimentam estimulando a faringe ao consumirem constantemente ao longo de toda a festa bebidas alcoólicas e fumaças de nicotina e marijuana. A cinética dos corpos se concentra em uma kinesfera individual, sem deslocamentos espaciais. Durante as performances individuais marcadas pelo início e fim de cada música, a cinética do movimento encontra-se especialmente na transferência de peso de uma perna para a outra, nos braços que socam ou pontuam o ar, no tronco, cabeça e ombros que se movimentam para frente e para trás e oscilando entre os lados direito e esquerdo, o flexionar das pernas para marcar o ritmo da música e os braços apontando para o teto quando se ouve uma música que agrada muito. Os quadris são acionados especialmente pelas mulheres. Os homens mantêm a postura ereta, transferem os pesos de uma perna para a outra com a bacia quase estática.

A música é da banda Dimitri Pellz, daqui de Campo (http://www.myspace.com/dimitripellz). Sempre que os assisto me sinto como em um ritual de catarse do qual saio mais leve. Em todo momento de querer gritar e sair correndo deveria existir um show do Dimitri. Acho que seríamos menos tensos, mais felizes..

30 maio 2009

Her morning elegance

Vídeodança israelense com música de Oren Lavie.
Sutil, com densidade que me conforta.


26 maio 2009

Quixotesca

Meus sonhos sempre me despertam pra realidade.
Somos peças criativas suspensas no chão.

20 maio 2009

vício torpe

Eu dava tapas pra ver se ela deixava de voltar, mas ela sempre no dia seguinte me ligava dizendo que queria me ver. E cada vez que vinha recebia estapadas em lugares diferentes, umas homéricas outras mais leves, com dó, até esgotar as chances de despertá-la de seu vício comportamental, cegueira torpe de si. 
Dentre as incomepetências que a contaminavam, a simples incerteza lhe limitava sentir e expressar amor ou qualquer sentimento humano menos importante.
Assumir provocava-lhe consumo de suas propriedades humanas construídas envoltas de bolha suja de sabão cremoso. 
Um dia resolveu não voltar. Sumiu da minha fúria. E meu desejo também se foi. 

06 maio 2009

Folkotidiano

Ultimamente venho me identificando com algumas frases que me soavam bastante externas como “gosto não se discute”, “há males que vem para o bem” ou “não coloque o carro na frente dos bois”. Ouvia as pessoas dizerem, mas eu mesma nunca os repetia, a não ser quando queria fazer referência satírica às frases que, aparentemente, são repetidas ao longo de gerações como que por osmose. Eu, artista da contemporaneidade, mantinha o meu “papel” de preservar a diferença e negar a tradição. Certo é que incorporei cargas históricas da sociedade que integro, ou ela que me engoliu, porque essas sabedorias vêm me fazendo um “baita” sentido, à medida que vou me deparando com algumas dificuldades e descobertas da vida adulta.

Será que aprendê-las e incorporá-las é um dos pré-requisitos da entrada real à vida adulta e determina o reconhecimento dos outros sobre nós enquanto gente? Quantas pessoas ao se tornarem pais ou mães repetem canções de ninar que seus avós e bisavós também cantavam para novos integrantes da família, ou já “deram uma banana” com aquele gesto que acompanha a ação para alguém que o incomodou, ou se deu o privilégio de rir “à toa”? 

Todos esses exemplos são manifestações do folclore que não faz parte de um tempo pretérito, que não está extinto ou localizado nas florestas como o saci-pererê ou como o mãozão das matas da Nhecolândia. Eles são vivenciadas todos os dias, em diversas esferas da vida cotidiana e são atuais, como explica Barreto, em citação de Marlei:
“...O povo não foi, o povo é (...) Toda vez que se dá maior importância ao passado, nos moldes da cultura folclórica, se aliena o próprio povo da realidade. E não há maior mal de afastar a comunidade de sua própria experiência, de seus contatos, de sua participação.” (BARRETO in SIGRIST, 2000, p. 29)

As frases feitas, ditados populares, locuções tradicionais são exemplos de como o folclore  é vivo tanto no meio rural como na cidade e é ressignificado por meios de comunicação de massa, por livros didáticos, além de ser repassado pelo tradicional boca-a-boca. 

Assim como frases, os gestos, a corporeidade e a maneira como nos movimentamos cotidianamente (ou também em festas) o nosso corpo está relacionada às referências familiares ou às pessoas de estreita e constante convivência, como amigos, familiares, namorado, colegas de trabalho, etc. No que tange ao universo corporal, parece-me mais difícil barrar incorporações, até mesmo porque não aprendemos a racionalizar este tipo de aprendizado, por mais que soframos interferências de educações do tipo “etiqueta” para regras de usos do corpo em espaços públicos ou para padronizar comportamentos em determinados locais e tempos. E meu, como é difícil admitir e perceber que me gesticulo como a minha mãe, minha entonação para perguntas e o tom da voz são idênticos aos da minha irmã, ando e me porto durante as refeições do jeitinho que meu pai também convencionou se comportar.

Nesse contexto é difícil delinear contornos de origens espaço-temporais deste conhecimento e dos processos de educação e comunicação, mas estes fatores indicam que a cultura popular (transmitida sem o artifício de tecnologias de informação e sem sistematização racional) está presente na formação de indivíduos e na maneira de se relacionarem com fenômenos de seu ambiente. 

Fontes de idéias:
BARBERO, Jesús Martin. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções tradicionais no Brasil. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1986.
SIGRIST, Marlei. Chão batido – a cultura popular de Mato Grosso do Sul, folclore e tradição. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2000.
Site Reporter Net. Dez ditados populares e seus significados. Acessado em 4 de maio de 2009. http://www.reporternet.jor.br/10-ditados-populares-e-seus-significados/