29 maio 2010

numa noite de inverno..

Pra mim a descrição mais bela da leitura íntima de corpos.
Já faz um tempo que a degustei e sempre que retorno a ela fico encantada. Como é linda.
Deixo aqui pra compartilhar com vocês (Leitora e Leitor).

"Vocês estão juntos na cama, Leitor e Leitora. É chegado, enfim, o momento de tratá-los no plural, tarefa muito comprometedora, pois equivale a considerá-los um só sujeito. É a vocês que falo, volume não muito bem discernível sob esse lençol amarrotado. Quem sabe depois seguirão cada qual para seu lado, e a narrativa terá que extenuar-se manobrando alternadamente a alavanca de câmbio para mudar do você feminino ao você masculino; mas agora, em vista do fato de que seus corpos procuram encontrar, entre pele e pele, a adesão mais pródiga de sensações, transmitir e receber vibrações e movimentos ondulantes, ocupar os cheios e os vazios, dado que na atividade mental vocês também concordaram em buscar máxima concordância, agora se pode dirigir a vocês um discurso coerente que os considere uma pessoa uma e bicéfala. Em primeiro lugar, é preciso determinar o campo de ação ou o modo de ser dessa entidade dupla que vocês constituem. [...] Vocês certamente só existem um em função do outro; mas, para tornar tudo possível, seus respectivos eus devem não tanto anular-se quanto ocupar sem resíduos todo o vazio do espaço mental, poupar-se cada um à máxima taxa de juro ou gastar-se até o último centavo. Enfim, o que vocês fazem é muito bonito, mas gramaticalmente não muda nada. No momento em que mais parecem um vocês unitário, são dois vocês separados e mais fechados em si que antes. [...]
Leitora, eis que agora você está sendo lida. Seu corpo está sendo submetido a uma leitura sistemática, mediante canais de informações táteis, visuais, olfativos, e não sem intervenções das papilas gustativas. Também o ouvido teve participação, atento a seus arquejos e trinados. Em você, o corpo não é apenas um objeto de leitura: faz parte de um conjunto complicado de elementos, que não são todos visíveis nem estão todos presentes, mas que se manifestam em acontecimentos visíveis e imediatos: o anuviar-se de seus olhos, seu sorriso, as palavras que diz, seu jeito de juntar e separar os cabelos, de tomar a iniciativa e retrair-se, e todos os signos que estão nos confins dos usos e costumes, todos os pobres alfabetos por meio dos quais um ser humano acredita em certos momentos estar lendo outro ser humano. [...]
Ao contrário da leitura das páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. [...]
Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio com seu ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro – não há modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É nesse aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis."

(trecho do livro Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino, p. 158 a 160)

Um comentário:

  1. O ato de ler um livro é quase como o de um amor táctil, não só pelo prazer sensorial do manuseio das páginas, mas no sentir a textura de cada passagem que nos faz transcender a um universo onde a palavra se une em frases e versos encantados aos nossos olhos, num jogo caleidoscópico onde vários caminhos se cruzam. É como imaginarmos o "ginógrafo", cujo texto é feito noite e dia no corpo da mulher amada e que de noite apaga tudo o que durante o dia escrevera, para jamais cessar de escrever o seu livro no corpo dela. Esse personagem, uma autobiografia romanceada, está no livro "Budapeste" do Chico Buarque de Hollanda.

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