(...)
Perdi
alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária,
assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me
impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira
perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que
nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso
caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela
que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me
procurar.
Estou
desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia – a
covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la –, na
minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não
sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que
provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja
de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma ideia de
pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava e nem mesmo
sentia o grande esforço de construção que era viver. A ideia que eu fazia de
pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e
agora? Estarei mais livre?
Não.
Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por
objetivo achar – e que por segurança chamarei de achar o momento em que
encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de
entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá
essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse
para o quê.
Ontem
no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver
coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho
medo de viver o que não entendo – quero sempre ter garantia de pelo menos estar
pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se
explica que meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não
há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir
vivendo o que for sendo? Como é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu
tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?
E
uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia
estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o
medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele
está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me
era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança.
De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo
modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo?
Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela
probabilidade.
(...)
A paixão segundo G.H.
Clarice Lispector
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