03 julho 2010

em fluxo

De novo o fluxo por dentro era bem mais liberado que o de fora.

Uma hora e meia e os arquivos ainda não haviam sido transferidos da rede pro meu computador. E se minha vontade fizesse acelerar? Acelerou só meu metabolismo, que se expressava em cortes temporários de respiração, seguidos de respiração longa, solitária.

Meu almoço, uma esfiha de carne com conversa sobre a arte contemporânea de um pelego, ganhei de presente de uma companhia educada de olhar agudo, interrogafirmativo.

Os segundos pareciam deslizar. Não gotejaram nem um segundo e a baba grossa de tanta informação deslizante, escorreu, mas não deixei fazer com que me tirasse a noção de que cada coisa tem seu lugar, e as pessoas contam com a consciência disso, de minha parte.

O trânsito não estancou tanto quanto a transferência de arquivos, nem conseguiu me tirar do sério tanto quanto onde queria me fazer de forte ao lado da desfuncionária. “Silêncio, por favor...” foi o que me salvou. “Quis amar, mas tive medo...” também foi uma alternativa que aliviou e foi fácil parar em casa, pegar o irmão e descer meia quadra antes do lugar onde deveria estar quinze minutos antes de atravessar aquela esquina em que as pessoas esquecem a função das setas do carro.

Pela primeira vez me sentia à vontade em dizer o que me vinha à mente na frente de uma de minhas mentoras. Realmente o risco já não atormentava, afinal é daí que parte meus estímulos de pesquisa, de busca por entendimentos, estabelecimento de conexões. Minhas tradições, preconceitos. Também sou uma colcha de retalhos e todos os dias as conexões são refeitas, desfeitas, ficam um tempinho descansado em algum outro recipiente, que podia aliviar, mas às vezes não alivia.

O café e a miopia fizeram daquele momento mais especial como quando uma foto é mais interessante pelo desfoco que acentua o foco de um curto espaço daquele todo.

Voltei animada, pronta pra mais uma etapa do dia, que terminava pro movimento da Terra, mas não para o meu.

23 junho 2010

Mundo frágil

Outro escrito de alguns anos atrás..
Ando meio nostálgica. Ciclo mudando, pele, cheiro, texturas, cidades mudando..
Esse poema é de 2005.


Mundo frágil
De isopor e creolina
Figurado pela transparência
de um objeto que oculta a liquidez de sua origem

as fibras chegam a ranger os dentes que espetam.
as bolhas são destruídas
a violência do bico de um beija – flor
seca a pele de couro da rachadura
sem vestir nem viver

Vazão.
Haste da vantagem de se desprender
a condição inicial de conviver
a síncope da traição.
Reverência ao inconstituível.

Sem lugar e sem controle
A vida cresce na seringueira movediça
Atolada na lama do ressentimento
Do ideal inalcançável de beleza
De humildade
E ignorância

Vingativo
Vulnerável
Insuportável
Irresistível

Crueldade realista
Ou se move pelo desejo
Ou se é movido por ele.
Difícil distinguir:
realidade e fantasia
diabo satânico e pura humanidade
verdade e agressividade
a cor do céu quando se está apaixonada.

Sem vestir nem viver
Esconder seria uma arte
Não se importar
Se fechar para o mundo e suas idiossincrasias alienantes
Dividir o indivisível
Costurar os cacos de compaixão
De auto-estima
E sorrir

A tristeza não é uma forma de egoísmo!
Simplesmente vai e vem como os pés no chão
Que precisam se mover com seus movimentos inconscientes
Pra PODER andar.
E onde estão os pés?!
Embolados em uma borracha com tecido.
Ou acrílico, madeira, ferro, isopor...
Se esconder seria uma arte!?
Pois o sapato seria uma solução!

ELO
Escancarar
ver e enxergar
sem colocá-lo na divinição

29 maio 2010

numa noite de inverno..

Pra mim a descrição mais bela da leitura íntima de corpos.
Já faz um tempo que a degustei e sempre que retorno a ela fico encantada. Como é linda.
Deixo aqui pra compartilhar com vocês (Leitora e Leitor).

"Vocês estão juntos na cama, Leitor e Leitora. É chegado, enfim, o momento de tratá-los no plural, tarefa muito comprometedora, pois equivale a considerá-los um só sujeito. É a vocês que falo, volume não muito bem discernível sob esse lençol amarrotado. Quem sabe depois seguirão cada qual para seu lado, e a narrativa terá que extenuar-se manobrando alternadamente a alavanca de câmbio para mudar do você feminino ao você masculino; mas agora, em vista do fato de que seus corpos procuram encontrar, entre pele e pele, a adesão mais pródiga de sensações, transmitir e receber vibrações e movimentos ondulantes, ocupar os cheios e os vazios, dado que na atividade mental vocês também concordaram em buscar máxima concordância, agora se pode dirigir a vocês um discurso coerente que os considere uma pessoa uma e bicéfala. Em primeiro lugar, é preciso determinar o campo de ação ou o modo de ser dessa entidade dupla que vocês constituem. [...] Vocês certamente só existem um em função do outro; mas, para tornar tudo possível, seus respectivos eus devem não tanto anular-se quanto ocupar sem resíduos todo o vazio do espaço mental, poupar-se cada um à máxima taxa de juro ou gastar-se até o último centavo. Enfim, o que vocês fazem é muito bonito, mas gramaticalmente não muda nada. No momento em que mais parecem um vocês unitário, são dois vocês separados e mais fechados em si que antes. [...]
Leitora, eis que agora você está sendo lida. Seu corpo está sendo submetido a uma leitura sistemática, mediante canais de informações táteis, visuais, olfativos, e não sem intervenções das papilas gustativas. Também o ouvido teve participação, atento a seus arquejos e trinados. Em você, o corpo não é apenas um objeto de leitura: faz parte de um conjunto complicado de elementos, que não são todos visíveis nem estão todos presentes, mas que se manifestam em acontecimentos visíveis e imediatos: o anuviar-se de seus olhos, seu sorriso, as palavras que diz, seu jeito de juntar e separar os cabelos, de tomar a iniciativa e retrair-se, e todos os signos que estão nos confins dos usos e costumes, todos os pobres alfabetos por meio dos quais um ser humano acredita em certos momentos estar lendo outro ser humano. [...]
Ao contrário da leitura das páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. [...]
Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio com seu ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro – não há modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É nesse aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis."

(trecho do livro Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino, p. 158 a 160)

02 maio 2010

do sofrido ao soft

Por ter, coincidentemente, assistido a esses dois videoclipes, um seguido do outro, percebi que, nos dois, os cantores conversam com um boneco, ao dizerem sobre a pessoa que amam. É... quando distante, o jeito é falar com representações.

"Crave" é ícone da minha adolescência, em que ficava sabendo das músicas de sucesso das baladinhas campo-grandenses, quando minha irmã (mais velha que eu) chegava em casa descrevendo as festas que ainda não podia ir.

"Fidelity" é fofa, como é os ambientes leves que ando percebendo em vários aspectos. Conheci por uma amizade nova, taurino como eu, e que me abriu horizontes audiovisuais e profissionais, ao dizer delicadamente com suas ações cotidianas: é possível, sim, ser um ser humano em uma instituição pública e não só mais uma peça da burocracia.

Abaixo vão os dois videoclipes, do sofrido ao soft, os extremos que vêm desenhando meu corpo esses tempos.

10 abril 2010

cristais de tempo

foto: Kenji Arimura

Volátil como momentos de equilíbrio, de inércia no deslocamento, um segundo paralisa, cristalizado no cartão de (da) memória.
Ainda bem que há quem saiba pescar e polir esses cristais de tempo presente, que nos fazem lembrar que apesar de o mesmo, nunca igual.

08 abril 2010

22 março 2010

Out.ono

Não pude deixar de colocar aqui essas coincidências de sentido (na minha percepção coincidem) entre texto, imagem e a nova estação em que estamos entrando.
A foto é do Kenji Arimura, o primeiro texto é do Yan Chaparro, o segundo de Gabriel García Marquez, a conexão é minha.

"As folhas das arvores desenham no ar composições que me levam a pensar o que elas estão querendo dizer. Observo meus poros absorvendo algum sentido que chega pelo vento. Uma conversa inicia, estamos grudados em meio do mesmo mundo, não temos escapatória, somos dois, uno possível que transcende o insuportável. (...) Minha pele esta grudada ao que envolve, posso enxergar meu próprio sangue nas fissuras deste vento que chega". (publicado no blog entrecomum.blogspot.com)

"No dia em que o matariam (...) tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros". (retirado de Crônica de uma morte anunciada)

12 março 2010

Let me sing you a waltz

Foto de Annie Leibovitz
A curiosidade é que foi tirada pouco antes de John ser assassinado, mas este fato chama muito menos a atenção que a sutileza de expressão de seu amor por ela, tão sutil que faz desabar qualquer tipo de proteção ou armadura. Como uma valsa que vai te tocando aos poucos, serena, e te envolve de tal forma que passos em sentidos opostos se transformam em rodopios pelo salão.
Combina com a música que acabei de ouvir e que coloquei aqui embaixo, trilha sonora do filme "Antes do pôr-do-sol", sequência do filme "Antes do amanhecer", ambos dirigidos por Richard Linklater, um lançado em 2004 e o outro em 1995. Tem simplicidade tocante parecida com a da foto.
Sugiro que ouçam experienciando a foto, que proporciona esse tempo lento de desfrutar uma coisa só que proporciona diversas sensações e pensamentos.