26 setembro 2010

enxurrada

Água. Muita água jorrando, se esparramando e tomando conta dos tornozelos, joelhos, quadris, bocas. Isso no final, porque começou com cheiro de mofo, cadeiras de plástico que escorregavam no chão de azulejo, colocadas em frente a um palco marrom, de madeira arranhada. Muitos corpos ocuparam o opereto de maneira previsível, vestidos previsivelmente e aplaudidos como havia de ser. A beleza se vestiu com blusa e calças largas, sandálias e bolsa transpassada, era um homem comum novamente, previsivelmente seguro, de perto engordado, com algum problema por de dentro, um problema grave. Minha pergunta foi respondida sinceramente com os olhos, a boca sorriu ironicamente e, como de rigor, respondeu com língua afiada alguma barbárie. Retrucava indiretamente, mas dizia que tudo estava bem, como havia de ser. Depois das palavras o ruído vinha das águas jorrando, jorrando e tomando conta do lugar e dos meus dedos, dos meus olhos, da roupa dele e do mau-humor que o vinha constituindo. Água que era conseqüência, mas queria pressentir que, logo em seguida, provocaria outra enxurrada de barbáries ambíguas, paralisantes.

22 setembro 2010

observação

Interessante receber um veredicto psicanalítico sem precisar pagar as centenas de reais que uma consulta desse tipo custa, mas tenho receio de que o sujeito do discurso esteja se olhando no espelho, em vez de sua janela.

01 setembro 2010

a vingança da cultura

"A revolução já não está na ordem do dia, mas a capacidade de fazer história está longe de ter desaparecido. Na perspectiva de vivermos melhor em conjunto, a cultura democrática, mais do que nunca, está em aberto e por inventar, requerendo que se mobilize a inteligência e a imaginação dos seres humanos".

(Gilles Lipovetsky - "A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada")

03 agosto 2010

carta crítica

"Procure e exerça a crítica, mas não se deixe esmagar por ela e não a exerça por mero prazer. Exerça-a com moderação e com ânimo de contribuir para o avanço dos conhecimentos e não para sobressair-se ou vingar-se. Lembre-se de que a crítica destroi o erro, mas também pode matar a verdade. Lembre-se de que a maior parte das pessoas vê com desconfiança as ideias novas. E lembre-se ainda de que, seja ou não justificada, a crítica não substitui a criação."


(Mario Bunge - Carta para uma futura epistemóloga em "Epistemologia")

03 julho 2010

em fluxo

De novo o fluxo por dentro era bem mais liberado que o de fora.

Uma hora e meia e os arquivos ainda não haviam sido transferidos da rede pro meu computador. E se minha vontade fizesse acelerar? Acelerou só meu metabolismo, que se expressava em cortes temporários de respiração, seguidos de respiração longa, solitária.

Meu almoço, uma esfiha de carne com conversa sobre a arte contemporânea de um pelego, ganhei de presente de uma companhia educada de olhar agudo, interrogafirmativo.

Os segundos pareciam deslizar. Não gotejaram nem um segundo e a baba grossa de tanta informação deslizante, escorreu, mas não deixei fazer com que me tirasse a noção de que cada coisa tem seu lugar, e as pessoas contam com a consciência disso, de minha parte.

O trânsito não estancou tanto quanto a transferência de arquivos, nem conseguiu me tirar do sério tanto quanto onde queria me fazer de forte ao lado da desfuncionária. “Silêncio, por favor...” foi o que me salvou. “Quis amar, mas tive medo...” também foi uma alternativa que aliviou e foi fácil parar em casa, pegar o irmão e descer meia quadra antes do lugar onde deveria estar quinze minutos antes de atravessar aquela esquina em que as pessoas esquecem a função das setas do carro.

Pela primeira vez me sentia à vontade em dizer o que me vinha à mente na frente de uma de minhas mentoras. Realmente o risco já não atormentava, afinal é daí que parte meus estímulos de pesquisa, de busca por entendimentos, estabelecimento de conexões. Minhas tradições, preconceitos. Também sou uma colcha de retalhos e todos os dias as conexões são refeitas, desfeitas, ficam um tempinho descansado em algum outro recipiente, que podia aliviar, mas às vezes não alivia.

O café e a miopia fizeram daquele momento mais especial como quando uma foto é mais interessante pelo desfoco que acentua o foco de um curto espaço daquele todo.

Voltei animada, pronta pra mais uma etapa do dia, que terminava pro movimento da Terra, mas não para o meu.

23 junho 2010

Mundo frágil

Outro escrito de alguns anos atrás..
Ando meio nostálgica. Ciclo mudando, pele, cheiro, texturas, cidades mudando..
Esse poema é de 2005.


Mundo frágil
De isopor e creolina
Figurado pela transparência
de um objeto que oculta a liquidez de sua origem

as fibras chegam a ranger os dentes que espetam.
as bolhas são destruídas
a violência do bico de um beija – flor
seca a pele de couro da rachadura
sem vestir nem viver

Vazão.
Haste da vantagem de se desprender
a condição inicial de conviver
a síncope da traição.
Reverência ao inconstituível.

Sem lugar e sem controle
A vida cresce na seringueira movediça
Atolada na lama do ressentimento
Do ideal inalcançável de beleza
De humildade
E ignorância

Vingativo
Vulnerável
Insuportável
Irresistível

Crueldade realista
Ou se move pelo desejo
Ou se é movido por ele.
Difícil distinguir:
realidade e fantasia
diabo satânico e pura humanidade
verdade e agressividade
a cor do céu quando se está apaixonada.

Sem vestir nem viver
Esconder seria uma arte
Não se importar
Se fechar para o mundo e suas idiossincrasias alienantes
Dividir o indivisível
Costurar os cacos de compaixão
De auto-estima
E sorrir

A tristeza não é uma forma de egoísmo!
Simplesmente vai e vem como os pés no chão
Que precisam se mover com seus movimentos inconscientes
Pra PODER andar.
E onde estão os pés?!
Embolados em uma borracha com tecido.
Ou acrílico, madeira, ferro, isopor...
Se esconder seria uma arte!?
Pois o sapato seria uma solução!

ELO
Escancarar
ver e enxergar
sem colocá-lo na divinição

29 maio 2010

numa noite de inverno..

Pra mim a descrição mais bela da leitura íntima de corpos.
Já faz um tempo que a degustei e sempre que retorno a ela fico encantada. Como é linda.
Deixo aqui pra compartilhar com vocês (Leitora e Leitor).

"Vocês estão juntos na cama, Leitor e Leitora. É chegado, enfim, o momento de tratá-los no plural, tarefa muito comprometedora, pois equivale a considerá-los um só sujeito. É a vocês que falo, volume não muito bem discernível sob esse lençol amarrotado. Quem sabe depois seguirão cada qual para seu lado, e a narrativa terá que extenuar-se manobrando alternadamente a alavanca de câmbio para mudar do você feminino ao você masculino; mas agora, em vista do fato de que seus corpos procuram encontrar, entre pele e pele, a adesão mais pródiga de sensações, transmitir e receber vibrações e movimentos ondulantes, ocupar os cheios e os vazios, dado que na atividade mental vocês também concordaram em buscar máxima concordância, agora se pode dirigir a vocês um discurso coerente que os considere uma pessoa uma e bicéfala. Em primeiro lugar, é preciso determinar o campo de ação ou o modo de ser dessa entidade dupla que vocês constituem. [...] Vocês certamente só existem um em função do outro; mas, para tornar tudo possível, seus respectivos eus devem não tanto anular-se quanto ocupar sem resíduos todo o vazio do espaço mental, poupar-se cada um à máxima taxa de juro ou gastar-se até o último centavo. Enfim, o que vocês fazem é muito bonito, mas gramaticalmente não muda nada. No momento em que mais parecem um vocês unitário, são dois vocês separados e mais fechados em si que antes. [...]
Leitora, eis que agora você está sendo lida. Seu corpo está sendo submetido a uma leitura sistemática, mediante canais de informações táteis, visuais, olfativos, e não sem intervenções das papilas gustativas. Também o ouvido teve participação, atento a seus arquejos e trinados. Em você, o corpo não é apenas um objeto de leitura: faz parte de um conjunto complicado de elementos, que não são todos visíveis nem estão todos presentes, mas que se manifestam em acontecimentos visíveis e imediatos: o anuviar-se de seus olhos, seu sorriso, as palavras que diz, seu jeito de juntar e separar os cabelos, de tomar a iniciativa e retrair-se, e todos os signos que estão nos confins dos usos e costumes, todos os pobres alfabetos por meio dos quais um ser humano acredita em certos momentos estar lendo outro ser humano. [...]
Ao contrário da leitura das páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. [...]
Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio com seu ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro – não há modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É nesse aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis."

(trecho do livro Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino, p. 158 a 160)

02 maio 2010

do sofrido ao soft

Por ter, coincidentemente, assistido a esses dois videoclipes, um seguido do outro, percebi que, nos dois, os cantores conversam com um boneco, ao dizerem sobre a pessoa que amam. É... quando distante, o jeito é falar com representações.

"Crave" é ícone da minha adolescência, em que ficava sabendo das músicas de sucesso das baladinhas campo-grandenses, quando minha irmã (mais velha que eu) chegava em casa descrevendo as festas que ainda não podia ir.

"Fidelity" é fofa, como é os ambientes leves que ando percebendo em vários aspectos. Conheci por uma amizade nova, taurino como eu, e que me abriu horizontes audiovisuais e profissionais, ao dizer delicadamente com suas ações cotidianas: é possível, sim, ser um ser humano em uma instituição pública e não só mais uma peça da burocracia.

Abaixo vão os dois videoclipes, do sofrido ao soft, os extremos que vêm desenhando meu corpo esses tempos.